Sempre me questionei do porque de uma pessoa amar a outra e anular-se. Deixar dominar-se, ser maltratada, desvalorizada, humilhada, desrespeitada na sua condição de pessoa.
Como terapeuta tenho algumas respostas, aprendidas no meu percurso acadêmico. A psicanálise enumera, e muito bem, todas as questões que podem levar uma pessoa a anular-se. Aprendi que um pai tirano e uma mãe omissa ou vice-versa, roubam a auto-estima; que os maus tratos físicos e psicológicos na infância, adolescência e até na vida adulta, são fertilizantes para tornar uma pessoa potencialmente fraca, a fraqueza torna-se a sua força, sua arma de defesa. Como uma praga que ataca o tronco de uma árvore, deixando-a doente a ponto de matá-la; da mesma forma as pragas que atacam o nosso psique, (Freud, Lacan, Jung e outros, as descrevem sabiamente), as tornam presas fáceis dos inescrupulosos. Os psicopatas são mestres em fareja-las. Há tantos psicopatas circulando entre nós e nem nos damos conta que aquela pessoa tão sedutora (narcisista) - prestativa (predadora) – compreensiva (dissimulada) – conselheira (dominadora), tão coitadinha, tão incompreendida, seja um deles. São bons manipuladores, aproximam-se e atacam suavemente e você nem percebe que caiu nas suas mãos, se apaixona, e ai começa o seu pesadelo. Vários motivos levam uma pessoa a ficar nesse tipo de relação sádica, onde o caçador domina totalmente sua presa. Como a minha proposta é falar de mulheres, vou me deter nas mulheres-vítimas, que são submetidas constantemente à humilhação, maus tratos físicos e emocionais.
Para mim, como mulher e terapeuta ao lidar frente a frente com essa realidade, sei o quão doloroso e revoltante é quando uma mulher espancada e humilhada, sem forças para tomar qualquer decisão a seu favor porque não há esperança no seu sofrimento, incapaz de reagir diante dessa dominação, chega em busca de ajuda com os olhos sem vida, pedindo literalmente socorro. O primeiro passo é fazê-la perceber que o aparentemente “ simples fato “ dela estar procurando ajuda é determinante para sua libertação. É gratificante vê-la lutando a seu favor. A cada sessão, descobertas são feitas e medos se vão e o brilho nos olhos começa a voltar.
Ledo engano quem pensa que só as mulheres de classe cultural e econômica baixa passam por essa relação obsessiva; mulheres de todos os níveis sócio-econômicos neste instante estão sendo submetidas a uma relação de amor bandido. Bandido é aquele que rouba as suas forças, os seu ideais, que anula seus valores morais e éticos. É aquele que agride, que te faz impotente, te domina e rouba a sua essência, a sua condição de Ser Humano. Da mesma forma que me emociono com essas pacientes no primeiro encontro também no último, após muitos momentos de lágrimas, dores, medos, verdades e mentiras que se misturam à sua realidade. Sabe e sente de fato quem ela é, o que a prendia nesse cativeiro de portas abertas, mas com trancas na mente que agora não tem mais domínio sobre ela. Após muitas descobertas e aceitação final, quando está pronta para seguir o seu caminho, a emoção é algo indescritível. A sensação que tenho sempre é de estar vendo uma gaiola aberta e o pássaro voando; mas voando com rumo certo, sabendo aonde pode e quer chegar. Cada uma com seus sonhos, não importa se grandes ou pequenos, mas são os seus sonhos - só seus.
Sonhar todo sonho impossível
Lutar quando é fácil ceder
Vencer o inimigo invencível
Negar quando a regra é render(...)
Quantas guerras terei que vencer
Por um pouco de paz(...)
E assim, seja lá como for
Vai ter fim a infinita aflição
E o mundo vai ver uma flor
Brotar do impossível chão
Apesar de você
amanhã há de ser outro dia(...)
Hoje você é quem manda
Falou, tá falado
Não tem discussão, não.
A minha gente hoje anda
Falando de lado e olhando pro chão.
"Ah, tirania bandida que se manifesta no desamor ao povo.
É amor bandido, o governo diz que cuida mas rouba." (Neusa A. Mendes)
Você vai pagar, e é dobrado,
Cada lágrima rolada
Nesse meu penar.
Quando chegar o momento
Esse meu sofrimento
Vou cobrar com juros. Juro!
Todo esse amor reprimido,
Esse grito contido,
E o mundo vai ver uma flor
Brotar do impossível chão
(Chico Buarque)
Neusa A. Mendes